1. Introdução, narrativa e contexto

A Lei Anticorrupção dos Estados Unidos, formalmente conhecida como Foreign Corrupt Practices Act (FCPA), foi promulgada em 1977 com o objetivo de combater práticas ilícitas por parte de empresas norte-americanas no exterior. A legislação proíbe o pagamento de propinas a autoridades governamentais estrangeiras com o intuito de obter ou manter negócios e impõe às empresas obrigações rígidas de manutenção de registros contábeis precisos e controles internos eficazes.

A criação do FCPA foi diretamente influenciada pelo escândalo de Watergate, que revelou a existência de fundos secretos utilizados por grandes corporações norte-americanas para pagamento de subornos no exterior. Embora, inicialmente, tenha gerado preocupações sobre a perda de competitividade das empresas dos EUA em relação a concorrentes internacionais, ao longo do tempo a FCPA se consolidou como um marco da luta global contra a corrupção. Sua influência foi determinante para o desenvolvimento de normas semelhantes em outras jurisdições, como o UK Bribery Act, no Reino Unido, e a Lei Anticorrupção brasileira (Lei nº 12.846/2013).

Com a adesão dos Estados Unidos à Convenção Anticorrupção da OCDE, nos anos 1990, a aplicação do FCPA ganhou ainda mais força no contexto internacional. A jurisdição da lei passou a abranger não apenas empresas e cidadãos americanos, mas também qualquer entidade estrangeira que, de alguma forma, estabelecesse conexão com o território dos EUA.

De acordo com a legislação, que possui uma aplicabilidade ampliada, elementos de conexão são suficientes para apoiar a decisão de um caso ser levado à jurisdição dos EUA, como a participação de um indivíduo, ainda que estrangeiro, em uma reunião nos EUA relacionada a um esquema de suborno, ou até mesmo um e-mail armazenado em um servidor nos EUA que contenha informações que possam indicar a prática de suborno. No Brasil, como exemplo, a Odebrecht, que mantinha unidades nos EUA, e a Braskem, com papeis negociados na Bolsa de Valores de Nova York, foram processadas e condenadas com base na FCPA[1].

Entretanto, no dia 10 de fevereiro de 2025, o então presidente Donald Trump assinou um decreto suspendendo por 180 dias a aplicação do FCPA. Durante esse período, a Procuradora-Geral foi instruída a adotar as seguintes medidas específicas[2]:

Essa decisão gera preocupações tanto do ponto de vista jurídico quanto geopolítico em relação aos esforços multilaterais em prol da integridade e da responsabilidade corporativa. Este artigo busca analisar os desdobramentos dessa mudança, seus impactos econômicos e regulatórios, bem como os reflexos sobre empresas e iniciativas de integridade, especialmente no Brasil.

Implicações Jurídicas da Suspensão da FCPA para o Brasil

A suspensão da FCPA reduz o alcance extraterritorial das sanções anticorrupção dos EUA, diminuindo a exposição de empresas brasileiras a investigações e multas por práticas ilícitas no exterior[3]. No entanto, a Lei Anticorrupção brasileira (Lei 12.846/2013) e outros dispositivos nacionais continuam em vigor, mantendo a responsabilização administrativa, civil e criminal por atos de corrupção[4]. A ausência da FCPA pode criar um vácuo regulatório e aumentar incertezas sobre qual legislação priorizar no compliance internacional, já que normas como o UK Bribery Act e convenções da OCDE permanecem ativas[5]. Escritórios e auditores podem relaxar práticas de due diligence, elevando riscos de litígios e disputas internas[6].

Implicações Políticas

A suspensão enfraquece a cooperação internacional entre Brasil e Estados Unidos em investigações e no compartilhamento de provas, reduzindo a pressão sobre grandes esquemas de corrupção transnacional. Internamente, iniciativas de combate à corrupção podem perder um importante referencial de enforcement extraterritorial, o que limita o alcance e a efetividade de determinadas ações.

Implicações Econômicas

A suspensão da FCPA pode elevar o risco-país e o custo de capital para empresas brasileiras, já que investidores e agências de rating consideram o compliance anticorrupção um indicador relevante de governança. Embora a princípio pareça favorecer a competitividade ao reduzir exigências regulatórias, mercados maduros continuam demandando certificações globais de compliance, limitando ganhos reais[7]

Impactos dessa suspensão no Brasil

enforcement da FCPA , ou seja, sua aplicabilidade efetiva (em livre tradução) pela SEC – Securities Exchange Committe[8] e pelo DOJ-Department of Justice[9],  foi aumentado com o tempo, especialmente após 1988, quando a norma se tornou mais severa, e certamente influenciou a legislação de muitos países, como se menciona neste artigo, por questões políticas e econômicas, tendo em vista a relevância mundial do seu país de origem. Na época os Estados Unidos eram o maior parceiro econômico mundial do Brasil.

Passadas várias décadas, esse cenário já não se confirma: atualmente, a China ocupa a posição de maior parceiro comercial do Brasil, e o país conta com uma Lei Anticorrupção própria — a Lei nº 12.846/2013 — consolidada e em pleno vigor.

Juridicamente, a suspensão da FCPA reduz sua incidência direta sobre empresas internacionais no Brasil. Contudo, sob a ótica da eficácia social, tal medida pode enfraquecer práticas de integridade, especialmente entre empresas ainda formalmente sujeitas à legislação norte-americana, como aquelas listadas na NYSE ou com vínculos operacionais com os EUA.

Nesse contexto, empresas brasileiras com atuação global — especialmente as que possuem relações comerciais com os EUA ou estão listadas em bolsas internacionais — podem interpretar a suspensão como uma flexibilização momentânea nas exigências de compliance. Ainda assim, é essencial reforçar que a Lei nº 12.846/2013 continua vigente no Brasil, estabelecendo sanções administrativas e judiciais para atos de corrupção contra a administração pública, seja nacional ou estrangeira.

A legislação brasileira segue alinhada aos princípios da Convenção Anticorrupção da OCDE e mantém mecanismos robustos de responsabilização. Assim, a suspensão do FCPA não elimina os riscos legais para empresas que desrespeitem padrões de integridade. Pelo contrário, reforça a urgência de fortalecer os dispositivos nacionais de combate à corrupção e de consolidar uma cultura interna de integridade no ambiente corporativo.

No setor privado, observa-se ainda um movimento crescente de autorregulação, especialmente por meio de iniciativas como os códigos de conduta setoriais, auditorias independentes e cláusulas contratuais anticorrupção. Esses instrumentos podem servir como barreiras contra retrocessos, garantindo a continuidade de boas práticas mesmo em contextos de instabilidade legal.

No Brasil, iniciativas como o Pacto Empresarial pela Integridade contra à Corrupção[10], Pacto Brasil pela Integridade Empresarial[11] e o Programa Pró-Ética[12] reiteram que a luta contra a corrupção permanece como prioridade, mesmo diante de sinais de retração em outros países. Essas ações demonstram o esforço contínuo do setor privado e da sociedade civil brasileira em consolidar uma cultura de integridade, independentemente de oscilações externas.

Além disso, movimentos empresariais voluntários, como Galvanizing the Private Sector (GPS) da OCDE[13] e o Business 20 (B20)[14], têm o potencial de exercer pressão política sobre governos, reforçando que a integridade é também um ativo econômico e reputacional — e não um entrave à competitividade.

Diante dos desafios colocados pela suspensão do FCPA e da necessidade de preservar uma cultura de integridade nas relações público-privadas, é fundamental reconhecer o papel estratégico das ações coletivas como instrumentos de resistência e avanço. Iniciativas multissetoriais de integridade, que envolvem empresas, sociedade civil e setor público, contribuem não apenas para mitigar riscos regulatórios, mas também para fortalecer ambientes de negócios mais justos e sustentáveis. Como destaca o Global Future Council on Transparency and Anti-Corruption[15], as ações coletivas criam um campo de atuação seguro para que atores vulneráveis, como pequenas e médias empresas, possam denunciar práticas ilícitas e adotar padrões de integridade sem sofrerem isoladamente as consequências dessa postura.

Nesse contexto, o Instituto Ethos tem desempenhado um papel fundamental na promoção de ações coletivas no Brasil, por meio de iniciativas como o Pacto Empresarial pela Integridade e Contra a Corrupção e da articulação do Grupo de Trabalho de Integridade, que funciona como um espaço contínuo de diálogo, troca de experiências e construção colaborativa de soluções para os desafios da integridade empresarial. Essas iniciativas favorecem a padronização de boas práticas, a capacitação de stakeholders e a inovação regulatória adaptada aos contextos locais, funcionando como uma resposta robusta e colaborativa à fragilidade institucional. Em um cenário de incertezas regulatórias internacionais, fortalecer as ações coletivas no Brasil se torna ainda mais relevante para garantir a continuidade e a efetividade da agenda anticorrupção no setor privado nacional.

Por fim, a suspensão do FCPA exige novas respostas dos organismos internacionais, governos, sociedade civil e empresas comprometidas para evitar retrocessos permanentes no combate à corrupção. Cumpre destacar que, embora a FCPA tenha sido uma porta de entrada para o fortalecimento de legislações anticorrupção em diversas partes do mundo, o cenário internacional atualmente conta com um arcabouço robusto de normas e instrumentos jurídicos que reafirmam o compromisso global com a integridade e o dever das empresas em prevenir e combater a corrupção. Abaixo, apresentamos uma tabela com algumas das principais legislações e normativas correlatas para consulta.

AnoNome da NormaPaísLink
1960Lei de Prevenção à Corrupção (PCA)SingapuraLink
1977Foreign Corrupt Practices Act (FCPA)EUALink
1993Lei de Prevenção à Concorrência Desleal / SubornoJapãoLink
1996Convenção Interamericana contra a CorrupçãoOEALink
1996Código Penal da Federação RussaRússiaLink
1997Convenção da OCDE sobre o Combate da CorrupçãoOCDELink
1997Lei Penal da China (versão atual)ChinaLink
1999Código Penal Alemão (StGB)AlemanhaLink
1999Corruption of Foreign Public Officials ActCanadáLink
1999Lei de Erradicação da Corrupção (Lei nº 31)IndonésiaLink
2000Decreto nº 3.678/2000BrasilLink
2001Decreto Legislativo 231ItáliaLink
2004Lei de Prevenção e Combate à Corrupção (Lei 12)África do SulLink
2004Regimento de Responsabilidade Fiscal (Ley 25917)ArgentinaLink
2005Código Penal TurcoTurquiaLink
2008Lei de Transparência e Acesso à InformaçãoUruguaiLink
2008Act on the Prevention of CorruptionCoreia do SulLink
2010UK Bribery ActReino UnidoLink
2011National Anti-Corruption Commission (Nazaha)Arábia SauditaLink
2013Lei nº 12.846/2013BrasilLink
2014Diretiva Anticorrupção da UEUnião EuropeiaLink
2016Lei nº 2016-1691 (Loi Sapin II)FrançaLink
2016Sistema Nacional AnticorrupçãoMéxicoLink
2018Lei de Supervisão NacionalChinaLink
2021Lei nº 14.133/2021BrasilLink
2022Lei nº 30 de 2002 / atualizaçõesIndonésiaLink
2022Decreto nº 11.129/2022BrasilLink

Autores

NomeEmpresa/Organização
Ana Carolina CorrêaMaeda, Ayres e Sarubbi Advogados
André CarilloSabesp
Carlos Rivas GomezInstituto Ethos
Carmen SfeirIBGC
Christianne Ramos Martins Barbosa
Daniely Farias Carneiro da Mota Ruas
Edmo NevesIBGC
Erik de Oliveira JoseTreviso Corretora de Câmbio
Marcela GreggoInstituto Ethos
Paulo Medeiros Sugai MortozaBanco BRB
Silvana Maria Kitzberger de SousaBanco do Brasil
Thaís DominguesIBGC

[1] https://g1.globo.com/politica/operacao-lava-jato/noticia/juiz-dos-eua-aprova-multa-de-us-26-bi-para-odebrecht-em-caso-de-corrupcao.ghtml

[2] https://www.migalhas.com.br/depeso/424685/trump-suspende-aplicacao-do-fcpa-ate-novas-diretrizes-serem-editadas

[3] https://www.jusbrasil.com.br/artigos/suspensao-temporaria-do-fcpa-impactos-e-implicacoes-para-o-combate-a-corrupcao-corporativa/3074639121

[4] https://www.migalhas.com.br/depeso/370209/a-responsabilizacao-de-empresas-por-atos-contra-administracoes

[5] https://www.correiobraziliense.com.br/direito-e-justica/2025/03/7094548-o-desafio-global-no-combate-a-corrupcao-em-tempos-de-suspensao-da-fcpa.html

[6] Vide nota 5

[7] https://direitodiario.com.br/fcpa-e-a-suspensao-o-que-esperar/

[8] https://www.investor.gov/introduction-investing/investing-basics/glossary/foreign-corrupt-practices-act-fcpa

[9] https://www.justice.gov/criminal/criminal-fraud/foreign-corrupt-practices-act

[10] http://www.empresalimpa.org.br/

[11] https://www.gov.br/cgu/pt-br/assuntos/integridade-privada/pacto-brasil

[12] https://www.gov.br/cgu/pt-br/assuntos/integridade-privada/avaliacao-e-promocao-da-integridade-privada/empresa-pro-etica

[13] https://www.oecd.org/en/networks/galvanizing-the-private-sector-as-partners-in-combatting-corruption.html

[14] https://g20.org/track/business-b20/

[15] World Economic Forum. Agenda for Business Integrity: Collective Action. Global Future Council on Transparency and Anti-Corruption, agosto de 2020.