“Países desenvolvidos já enxergam a África como ‘mercado de consumo’, o que aumenta preocupação com direitos sociais e qualidade de vida”, disse.
Secretário-adjunto da ONU e conselheiro internacional do Instituto Ethos, Carlos Lopes esteve na sede da entidade no último dia 28 de abril. Ele participou de duas reuniões. Na primeira, logo cedo, encontrou-se com representantes do Conselho Deliberativo e do Conselho Orientador. Em seguida, conversou com associados e coordenadores de projetos do Ethos.
Nas duas oportunidades, Lopes comentou o que vem fazendo na ONU. Ele é um dos 20 secretários-adjuntos da organização e se ocupa do continente africano, como secretário-executivo da Comissão Econômica das Nações Unidas para a África (Uneca), “a Cepal da África”, como ele definiu o órgão.
Lopes agora trabalha e mora em Adis-Abeba, capital da Etiópia, e tem feito contatos e organizado eventos em várias partes do mundo para mostrar uma África que ninguém vê. Segundo ele, essa África recebe mais investimentos que a América Latina, cresce a taxas “chinesas” e possui índices de urbanização velozes, com impactos ainda não mensurados nem discutidos sobre o meio ambiente e a qualidade de vida. Cidades como Adis Abeba já abrigam 5 milhões de habitantes, mas os projetos de saneamento, educação, saúde, mobilidade e habitação não conseguem acompanhar esse crescimento.
Mas o maior investidor não é a China, diz Lopes. Estados Unidos e União Europeia ainda ocupam o primeiro lugar. A Rússia vem em terceiro e a China em quarto, mas, dependendo da região, está à frente da Rússia.
“Países desenvolvidos começam a enxergar a África como ‘mercado de consumo’, o que muda a maneira de abordar o continente e aumenta a preocupação com direitos sociais e qualidade de vida”, afirma. “Zonas de conflito devem encontrar soluções para pacificação em breve. Investidores não querem mais só comercializar recursos naturais, mas ‘ficar’ nos lugares”, observa.
Em sua opinião, até 2040/2050, Nigéria, Congo e Etiópia terão populações maiores e mais jovens do que o Brasil. Com exceção do Congo, país que ainda não possui muitas estradas, as florestas dos outros países africanos sofrem devastação pela urbanização desenfreada e falta de políticas ambientais (guerras também, em algumas regiões).
Na África lusófona, a influência econômica brasileira tem aumentado, abrindo mercado para empresas e produtos do país. Mas o Brasil precisa decidir o que quer do continente, para manter as conquistas no lado que fala português e ampliar para outras regiões que se sentem “próximas” a nós pela forte influência demográfica e cultural dos negros em nossa sociedade.
Sobre os ODS
Carlos Lopes também destacou a importância dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), que serão tema da próxima Assembleia Geral da ONU, em setembro. Começou a abordagem fazendo um balanço dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) e o papel do Brasil. Para ele, os objetivos foram atingidos em nível global, mas, olhando país a país, o resultado não é tão bom.
Em sua análise, China e Índia foram os países que realizaram os maiores esforços para cumprir o Objetivo 1 – “Reduzir a miséria pela metade” –, pelo tamanho de suas populações, a extensão dos problemas da fome e da pobreza e as dificuldades de “encontrar” os pobres em regiões inóspitas e de difícil acesso.
O Brasil teve papel importante não só por ter atingido praticamente todas as metas, mas porque realizou um grande trabalho de mobilização, agregando empresas e a sociedade civil na campanha para se atingir os ODM. Os produtos criados aqui (logos, manuais, iniciativas com empresas) foram copiados em grande número de países. Segundo Lopes, nosso país influenciou até o Barack Obama em sua campanha à presidência dos EUA – o “Nós podemos” foi traduzido pela ONU para “Yes, we can” em 2004.
Para ele, a importância dos ODM foi maior para países em desenvolvimento do que para aqueles chamados “centrais”. Todavia, na Rio+20, ficou claro que o desenvolvimento precisa ser pensado de forma global e levando em conta os três pilares da sustentabilidade. As metas estabelecidas para, por exemplo, diminuir as desigualdades regionais, precisam servir para a Suécia e para o Paraguai.
Nesse sentido, os ODS superam os ODM, porque estão sendo pensados para serem universais. EUA e Benim precisam se sentir engajados da mesma maneira, para atingir as metas dentro de suas realidades.
Assim sendo, Carlos Lopes lista quatro grandes problemas que precisam ser esquadrinhados para que os ODS atinjam essa universalidade almejada
- Medição – Os objetivos precisam encontrar um modo de ser “medidos” de acordo com os países. Por exemplo, combate à forme na Eritreia é diferente de combate à fome na Dinamarca. Enquanto em um é realmente garantir três refeições por dia para a população, em outro é mudar (talvez) hábitos alimentares, incentivar a agricultura orgânica, diminuir a produção e o consumo de alimentos ultraprocessados etc.
- Prestação de contas – Justamente por não haver um método de “medir” muito acurado, a prestação de contas sobre os ODM pelos países foi imprecisa, principalmente daqueles mais industrializados. Nos ODS, essa questão precisa ser bem “enquadrada” para se saber realmente o que as nações obtiveram.
- Meio ambiente – A discussão dos ODS não pode estar separada daquela sobre mudanças climáticas. Com os ODM, isso ocorreu e tivemos projetos que, em nome de combater a fome ou garantir acesso a energia e saneamento, não levaram em conta as variáveis ambientais. O inverso também ocorreu: em nome de preservar o meio ambiente, muitas populações foram desalojadas de seus locais de moradia e trabalho. Com os ODS, é preciso estabelecer um objetivo comum, mas com responsabilidades diferenciadas. Se possível, evitar interpretações muito políticas.
- Impactos – Reconhecer que os meios de implementação dos ODS podem causar impactos que o mundo tenta evitar. Por exemplo: infraestrutura. O saneamento básico é imprescindível. Podemos pensá-lo da forma tradicional ou exigir mais e inovar com projetos que levem em conta os critérios de sustentabilidade.
Lopes explica que a própria definição dos ODS já transcorre num processo de governança da ONU, diferentemente dos ODM. Nesses últimos, a ONU definiu e os países apoiaram. Nos ODS, os governos lideram o processo, com muita participação da sociedade civil.
Irlanda e Quênia são os países “facilitadores” dos ODS. Eles recebem as propostas das demais nações e estabelecem um consenso. Num primeiro esforço, os facilitadores resumiram as propostas em 164 indicadores. Mas é preciso diminuir esse número. E as discussões atuais dizem respeito a essa diminuição de objetivos. “Será que os ODS terão metas tão concretas como os ODM? Isto é onde se quer chegar. Algo simples, universal e, ao mesmo tempo, local. A Comissão de Estatística da ONU está quebrando a cabeça para chegar a uma fórmula ou fórmulas que garantam essa abrangência universal/local”, comentou Lopes.
Nesse aspecto, o Brasil também tem uma importante contribuição, segundo ele. As medições feitas para os ODM e os relatórios apresentados foram muito inovadores, contribuíram para a prestação de contas de outros países e podem influenciar na medição dos ODS. Basicamente, o país desdobrou voluntariamente as metas em nacionais, regionais e municipais, engajando os agentes sociais em vários âmbitos. O número nacional de um objetivo é uma conta feita entre todas as abrangências atingidas.
“Outro ponto importante da experiência brasileira é que cada cidadão se sentiu com ‘voz ativa’ para definir políticas públicas e iniciativas. Assim, a mobilização atingiu empresas e até a Bovespa”, disse.
Para ele, os ODS vão precisar da mesma mobilização para serem definidos e atingidos. E também vão depender de financiamento. Por isso, em julho, haverá uma conferência internacional em Adis-Abeba, com a presença dos países-membros, para meios de financiamento do desenvolvimento sustentável.
O novo acordo climático que deve ser celebrado em Paris, durante a COP 21, também vai influenciar os ODS, pois eles precisam estar alinhados com as metas de redução de emissões. E existem condições de se chegar a esse acordo, pois EUA, China, Índia e Rússia, antes renitentes, estão assimilando reduções em suas emissões de GEE.
Os destaques dos ODM:
Em números absolutos, o país que mais contribuiu para o sucesso dos ODM foi a China. O esforço maior, todavia, foi feito pelos países do oeste da Ásia e pela África, diz Lopes. “Eles partiram de mais longe para chegar ao objetivo. Diria até que o maior nível de esforço foi feito pela África. Hoje, é o continente que mais cresce no mundo. Por isso, os ODS são importantes para esse conjunto de nações: elas estão crescendo, mas para onde?”
Para ele, o Brasil fez grandes avanços sociais e foi muito original em políticas públicas. Mas possui debilidades na política ambiental, que ficam mais evidentes por causa da infraestrutura deficiente, com reflexos na economia. Os ODS podem representar a oportunidade para se superar esse gap.
Por Cristina Spera, do Instituto Ethos