Carlos Lopes_Meio-corpoOs africanos que morrem no mar ou no deserto fazem parte de um grupo determinado: não aceitam seu destino e estão prontos a arriscar suas vidas.

Por Carlos Lopes**

Desde o início do ano, um fluxo incessante de imagens invade televisões e meios de comunicação: a ilha italiana de Lampedusa; Calais, na zona francesa onde o Eurotúnel começa; Bodrum, na Turquia; as ilhas do leste grego; e, por fim, os enclaves espanhóis de Ceuta e Melila, no Marrocos. São imagens que retratam a escala massiva de tentativas de almas em desespero para aportar aos países europeus. Este mês, o Comissário da União Europeia (UE) responsável pela pasta da migração chegou a declarar que esta é a pior crise de migração desde a II Guerra Mundial. Será? Talvez esta seja a percepção da Europa Ocidental, mas a verdade é que não. E é importante compreender o motivo, pois mais crises como estas se avizinham.

A migração faz parte da evolução humana, desde que os sofisticados primatas saíram do Rift Valley, no continente africano. A História da humanidade é de tal maneira rica e complexa que ainda temos dificuldade em recuar a uma origem comum remota, à exceção dos relatos históricos e pressupostos filosóficos: parece mais fácil relacionar um passado histórico mais recente com aquele que, pelos acontecimentos e interação social gerados, modelou as nossas identidades – os seres humanos fazem uma leitura seletiva da História. Para muitos, a compensação justifica-se pelo mal feito a uns, e não a outros; os pedidos de desculpa serão aceitos por uns, mas não por outros; as propostas de paz serão moralmente aceitas por uns, mas não por outros – afinal de contas, um comportamento que mimetiza o comportamento individual a uma escala maior, a um nível social.

A maior parte dos italianos parece ter-se esquecido de que criou nações como a Argentina e o Uruguai; os britânicos, portugueses e espanhóis não ligam, respectiva e necessariamente, a criação da Austrália, da Nova Zelândia e da América do Sul à migração; se mencionarmos a Indochina, os chineses vaga ideia farão sobre o motivo de aquela região ter o seu nome; os americanos consideram de mau gosto lembrar que parte do que os Estados Unidos são hoje foi comprada ao México; e assim por diante. No entanto, há um continente que, na História recente, nunca foi associado à migração com o intuito de colonizar ou tirar partido da riqueza de outras regiões: a África! Parece mais fácil associar o continente à escravatura, à pilhagem dos seus recursos naturais e a um tratamento injusto em nível internacional.

A África tem lutado sobremaneira para sair da pobreza e tem tido um desempenho ainda melhor nos últimos tempos, mais concretamente, desde a virada de século, com taxas de crescimento mundiais acima da média da dos países em desenvolvimento. Estranhamente e mesmo assim, a narrativa sobre o continente recai essencialmente sobre a migração e em avaliações negativas de seu desempenho. Por esta razão, é fundamental que se compreenda de onde vem a ideia de que a África está a gerar mais migrantes do que nunca.

Os países africanos acolhem um número maior de migrantes do que aquele que exportam. Em abono da verdade, o grosso do número de africanos que procura por oportunidades fora dos seus países parte para outro país africano e menos de 2 milhões por ano procura por um destino no estrangeiro. Esse número é ínfimo comparativamente ao total de migrantes, sobretudo na Europa: do quarto de milhão que este ano tentou a sua sorte no Mediterrâneo, o contigente maior provém da Síria (cerca de 50 mil), uma parte dos que, por exemplo, se estabeleceram no Líbano (cerca de 1,5 milhão). Os afegãos, iemenitas, paquistaneses e outros não africanos utilizaram a mesma rota.

O atrativo europeu engloba uma panóplia variada de desenvolvimento, do acesso à informação (6 bilhões de celulares no mundo), proclamações de direitos humanos, apelo a valores morais universais, o desequilíbrio na distribuição das riquezas e as desigualdades transversalmente mundiais, a acrescentar a influência do terrorismo e do extremismo religioso. Parece que a forte defesa dos direitos por parte da Europa reverteu a seu desfavor.

Zonas de guerra como a Líbia e os desertos circundantes, os Grandes Lagos e os seus vizinhos e a de longa data beligerante Somália têm originado pedidos de asilo político e um enorme número de refugiados, número para o qual duros regimes políticos na África também têm contribuído. A timidez que os líderes africanos revelam sobre o tema da migração é perturbadora, mas, ainda assim, esses elementos não nos devolvem uma versão completa dos fatos.

Não houve momento nenhum na História em que o crescimento não tenha gerado a deslocação de migrantes da mesma região – como tem estado a suceder atualmente com os chineses, indianos e africanos. O crescimento potencializa as possibilidades de uma nova vida, salvo que a respectiva distribuição, sobretudo nos estágios iniciais do desenvolvimento de um país, é irregular e imprevisível – quem vê o vizinho com os meios e com a esperança que para si não existe lança-se à aventura. Veja-se o quão absurda teria sido a proposta de explodir barcos cheios de migrantes a caminho da América do Sul, quando da fuga dos infortúnios causados pelos pós-Guerras Mundiais. Esses migrantes buscavam, afinal, uma vida melhor, apesar do crescimento notável dos seus países permitido por, entre outros, o Plano Marshall.

Os africanos que morrem no mar ou no deserto fazem parte de um grupo determinado: não aceitam o seu destino e estão prontos a arriscar as suas vidas. A população mais jovem do mundo encara as nações desenvolvidas da Europa como faróis de esperança – afinal, é a casa dos direitos humanos que certamente compreenderá o seu apelo e lhes oferecerá trabalho!

A juventude africana continuará a aumentar, enquanto o resto do mundo caminhará para o envelhecimento. A dificuldade em admitir que o Estado-providência nos países em vias de envelhecimento não é sustentável tem conduzido às propostas mais estranhas em nível de políticas econômicas – a aceitação de que existe um desafio demográfico enorme implicaria uma vasta reformulação de escolhas políticas e econômicas que sustentassem a economia. Tal como já se assiste a uma limitação da transferência do valor da produção e da mão de obra para a economia do conhecimento e controle financeiro, também se assiste a limites do modelo econômico predominante. O equilíbrio demográfico é um elemento essencial, apesar da produtividade e progresso tecnológicos: a contribuição para a segurança social ou para os fundos de pensões não provirá de robôs ou da propriedade intelectual. Precisamos de pessoas, de trabalhadores e, sobretudo, de pessoas na ativa. Esta é a razão pela qual a Europa deve reconhecer que precisa dos imigrantes, como já foi sobejamente reconhecido pela Comissão da UE.

As cerca de 2 mil mortes no Mediterrâneo são uma chamada de atenção trágica. Entre o momento presente e 2050, a população africana vai duplicar e, mesmo que cresça à velocidade a que já assistimos ou a uma velocidade superior, provavelmente gerará um fluxo ainda maior de jovens africanos em busca de oportunidades numa Europa em vias de envelhecimento.

A extraordinária e ainda hoje impressionante bravura dos exploradores europeus que enfrentaram mares e geografias desconhecidos, com escassos meios científicos que os orientassem, tem vindo a ser celebrada – demonstração extraordinária da determinação humana. Os imigrantes de hoje mostram essa mesma bravura e estão a voltar-se para a Europa. Chegado o momento do volta-face*?

* O termo “volta-face” quer dizer reviravolta; mudança brusca de opinião.

** Carlos Lopes (foto), diplomata da Guiné Bissau, é secretário executivo da Comissão Econômica das Nações Unidas para a África.