Por que a sua empresa precisa se preocupar com cotas raciais?
No último dia 21 de março, tivemos o “Dia Internacional para Eliminação da Discriminação Racial”, data estabelecida pela Organização das Nações Unidas (ONU) em memória ao episódio ocorrido na África do Sul em 1960 (Massacre de Shaperville), que resultou na morte de 69 pessoas negras e outras tantas feridas que protestavam contra uma lei que limitava e determinava os espaços pelos quais as pessoas negras podiam circular.
O marco é de 62 anos atrás, mas, infelizmente, essa ainda é uma realidade para a população negra porque ainda vivemos em uma sociedade que segrega, marginaliza, exclui, violenta e mata pessoas negras todos os dias, especialmente no Brasil, um dos países mais desiguais do mundo (nono país, segundo o IBGE – 2019).
A violência contra a população negra deriva não só do racismo estrutural enraizado na sociedade, mas também do racismo sistêmico e institucional que permeia e orienta as políticas de Estado, que vêm se materializando, de forma histórica, através do que chamamos de “necropolítica”. Essa “instrumentalização da vida e descarte de corpos” (Achilli, MBEMBE) derivada do racismo tem determinado quem vive e quem morre e, principalmente, quais espaços cada pessoa pode ocupar na sociedade. Um exemplo são dados do mercado de trabalho, em que a população negra (em suas diversidades) não aparece de forma expressiva nos cargos de liderança mesmo sendo a maioria da população brasileira. Entretanto, ao analisar a maior parte da população que é assassinada, 77% das vítimas são pessoas negras (Atlas da Violência, 2021). Por que a sociedade determina que algumas pessoas podem ser médicas e cientistas, enquanto para outras pessoas restam a violência e a pobreza?
Questionando e enfrentando essas determinações, está um dos instrumentos jurídicos que vem rompendo grilhões, sendo fruto da luta e resistência do movimento negro em busca de reparação histórica, liberdade de ocupar, pertencer e por direitos e garantias. Aqui, falamos das cotas raciais, que hoje estão ameaçada. Ainda na perspectiva do motivo do protesto em 1860, que era ser contra uma lei que limitava a circulação de pessoas negras, nós temos que os ambientes educacionais também refletem a discriminação racial, de forma que existiam leis no Brasil que impediam a população negra de frequentar as escolas (anos de 1830). E hoje, apesar de não haver uma lei que coloque esses pontos diretamente como antes, nós temos visto outros instrumentos que impedem a população negra de estar nas universidades, como as barreiras territoriais, desigualdades socioeconômicas, violências, genocídio, entre outros.
Por isso, a existência de um instrumento que possibilite o ingresso de pessoas negras no ambiente educacional se torna fundamental. A Lei de Cotas Raciais (Lei 12.711/2012) surge com o objetivo de reduzir essas disparidades socioeconômicas, políticas e territoriais históricas entre pessoas negras e brancas, em especial, nos espaços educacionais. A permanência e o aprimoramento desse instrumento são essenciais para uma mobilização que reverta o quadro de anos de desigualdade e violências. Entretanto, após 10 anos, em seu processo de reavaliação, ao invés de nos depararmos com um amadurecimento do tema, com a integração das cotas com outras pautas raciais, socioeconômicas e territoriais e até mesmo expandir o olhar das cotas para profissionais da educação, reitoria, entre outros espaços de tomada de decisão nas universidades, voltamos a presenciar o questionamento a respeito da sua eficácia.
Argumentos que se pautam na perspectiva racista e na desinformação estão sendo revividos. As cotas raciais não só impulsionaram a criação de outras ações afirmativas no Brasil, que buscam combater e reduzir desigualdades históricas em diferentes prismas, mas proporcionaram mudanças significativas no ambiente educacional e, concomitantemente, no ambiente corporativo. Nas universidades, por exemplo, as cotas garantiram o acesso à educação superior, além de proporcionar representatividade nesses espaços. No que toca o mercado de trabalho, as empresas precisam estar atentas à discussão, porque ela influencia no desiquilíbrio racial dentro do ambiente corporativo. Isso porque só conseguimos avançar na agenda de diversidade e inclusão nas empresas, só conseguimos falar sobre retenção de talentos negros e de metas de contratação de lideranças negras, porque lá atrás foi feita uma mobilização para que as pessoas negras ocupassem o ambiente educacional, implicando na formação de diferentes profissionais em áreas distintas.
A ausência de diversidade nas empresas não se dá apenas pela não contratação, ela começa muito antes: começa com as pessoas negras e outras diversidades não concluindo o ensino fundamental, não conseguindo ingressar nas universidades, ou tendo que escolher entre trabalhar e estudar. E isso deriva de todo um contexto social desfavorável e desleal que vai refletir no mercado de trabalho. Desta forma, vale destacar que hoje nós temos pessoas negras formadas em toda e qualquer área que pudermos imaginar e isso só foi possível porque houveram instrumentos que possibilitaram essa realidade, como é o caso das cotas.
A ausência e/ou o enfraquecimento dessa política afirmativa, coloca em cheque toda e qualquer mobilização de políticas de diversidade futuras nas empresas. Sendo assim, o Instituto Ethos, enquanto uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), convida as empresas para participarem mais ativamente dessa discussão, para se aproximarem do tema e mais, para apoiarem a existência e a manutenção das cotas raciais como uma importante ação afirmativa de inclusão. O movimento em defesa, permanência e aprimoramento das cotas raciais acaba por dialogar diretamente com a luta pela eliminação da discriminação racial, uma vez que esse instrumento vem demonstrando relevância no combater às desigualdades (que são fruto desse racismo histórico). Se posicionar contra a discriminação racial, é estar a favor de ações afirmativas de inclusão, como as cotas raciais. As empresas são atores sociais importantes para não só fomentar e contribuir com essa discussão, mas para atuar na perspectiva de redução das desigualdades a partir do desenvolvimento de ações afirmativas, práticas e políticas de inclusão.
Por: Scarlett Rodrigues, coordenadora de Projetos de Direitos Humanos (autora), e Marina Ferro, gerente de Práticas Empresariais e Políticas Públicas (co-autora), ambas do Instituto Ethos
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