É longo o caminho para eliminar o trabalho infantil da América Latina. A Bolívia acaba de aprovar lei que autoriza trabalho de crianças com 10 anos.
O governo da Bolívia aprovou em julho uma lei que autoriza o trabalho de crianças com 10 anos de idade, contanto que não interfira em sua educação. A notícia foi duramente criticada pelos grupos de direitos humanos, já que a Bolívia é signatária da convenção das Nações Unidas que estabelece em 14 anos a idade mínima para o trabalho infantil. A medida sancionada na Bolívia chega num momento em que a luta comovente de milhares de crianças centro-americanas que atravessam ilegalmente a fronteira dos EUA ganha os holofotes e deixa claros os desafios que enfrentam milhões de crianças nos países de baixa renda da América Latina e de outras regiões.
Que tipos de pressão econômica e social levam os países a permitir que seus jovens trabalhem em atividades fatigantes e, por vezes, perigosas? Quais as principais diretrizes internacionais sobre exploração do trabalho infantil que os governos da América Latina se comprometeram a seguir? Qual o impacto da disseminação do trabalho infantil no crescimento econômico e na prosperidade a longo prazo desses países onde ela é tão comum? Que programas e projetos foram postos em prática pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) e pelos Estados soberanos para desencorajar o trabalho que explora a mão de obra infantil?
“Menores de 18 anos não devem operar máquinas de corte”
Embora a maior parte das crianças que trabalham esteja no campo, milhares de meninas e meninos são explorados em outros setores de alto risco como mineração, lixões, trabalho doméstico e fabricação de fogos de artifício e itens de pesca, de acordo com a OIT e com o Departamento do Trabalho dos EUA. Muitas são coagidas à prática de atividades ilegais por quadrilhas de traficantes e levadas à prostituição.
Janice Bellace, presidente do Departamento de Estudos Jurídicos e de Ética nos Negócios da Wharton School (Universidade da Pensilvânia), explica que há duas convenções da OIT referentes ao trabalho infantil: a 138 e a 132. O conceito por trás da Convenção 138, que estipula a idade mínima de trabalho, diz que “uma pessoa com menos de 18 anos não é totalmente capaz para consentir em trabalhar como soldado, prostituta” etc. Essa convenção não exclui todas as categorias de serviço na agricultura. Pelo contrário, Bellace acrescenta que “alguns tipos de trabalhos no campo podem ser perigosos. Não é trabalho bucólico. Em especial, indivíduos de menos de 18 anos não devem operar máquinas de corte”.
A 138, uma convenção mais complexa, é a mais importante das duas, observa Bellace, em parte porque “leva em conta o nível de desenvolvimento econômico do país. Ela considera também o tipo de trabalho (regular versus o que é chamado de trabalho ‘leve’), o número de horas semanais que a criança trabalha e se suas atividades ocorrem durante o período escolar ou não”. Em geral, essa convenção é bastante pragmática, explica Bellace. Quando é ratificada por um país, o governo se compromete a adotar “medidas graduais” para melhorar a situação. Contudo, “ninguém espera que a situação mude da noite para o dia, em parte porque o uso disseminado de crianças ocorre em razão da pobreza e do baixo desenvolvimento econômico”.
Já a Convenção 182, que trata das Piores Formas de Trabalho Infantil, aplica-se a atividades que são física e moralmente perigosas para crianças com menos de 18 anos. Em vários países da região, as piores formas de trabalho infantil — exploração do comércio sexual, tráfico de mão de obra infantil, uso de crianças em conflitos armados e tráfico de drogas, entre outros — constituem desafios especiais, porque são atividades criminosas muito bem escondidas e difíceis de lidar.
A Bolívia é um dos países mais problemáticos no que diz respeito à implantação da Convenção 138, dado que seu setor informal responde por 75% de todos os postos de trabalho do país. De acordo com a OIT, outros países em que mais de dois terços do total da mão de obra se encontram na informalidade incluem El Salvador, Honduras e Nicarágua. Com tanta contratação “por baixo dos panos”, é impossível calcular a extensão total das violações ao código da OIT. Os dados oficiais da mão de obra têm registros a partir de 15 anos de idade; logo, aquelas crianças que trabalham na economia informal “são muitas vezes omitidas”, observa Bellace. “Já que é ilegal, não é informado. Portanto, como se pode aferir se há progresso? É um conjunto de dados, ou um desafio à estimativa, muito interessante.”
Exposição a substâncias tóxicas, facões e facas afiadas
De acordo com o Departamento do Trabalho dos EUA, diversos fatores são responsáveis pela persistência do trabalho infantil na América Central. Dentre esses fatores estão a pobreza endêmica, o que torna as famílias extremamente vulneráveis ao choque econômico; a ausência de leis mais severas contra o abuso trabalhista; a fragilidade das instituições encarregadas dessas leis; e o acesso limitado, ou não existente, a oportunidades educacionais.
Segundo um estudo daquele departamento, as crianças que trabalham na produção de café em El Salvador, por exemplo, foram “expostas a intempéries, substâncias tóxicas, expedientes longos e ferimentos ocasionados por facões e facas afiadas”. Tais crianças trabalham no corte, na plantação e na colheita de lavouras, além de carregar cargas pesadas. De acordo com o Censo do Registro Escolar de 2011 de El Salvador, 8.217 crianças do país trabalharam nas lavouras de cana-de-açúcar e de café. Nesse mesmo ano, constatou-se que 485 crianças trabalhavam em fábricas de fogos de artifício e na coleta de lixo. O estudo informou ainda que “as crianças que trabalhavam com fogos de artifício corriam o risco de perder membros e estavam sujeitas a queimaduras, enquanto as que trabalhavam na coleta de lixo ficavam expostas ao lixo hospitalar e a doenças gastrointestinais, picadas de insetos e abuso físico”.
O relatório acrescenta: “As crianças também são recrutadas pelas quadrilhas para atividades ilícitas relacionadas a armas e ao comércio de drogas […]. De acordo com o governo de El Salvador, cerca de 30% dos membros das quadrilhas são crianças. Entre janeiro e outubro de 2012, 41 crianças em idade escolar foram mortas em razão da violência das quadrilhas. O acesso das crianças à educação fica tolhido pelo custo do material escolar e pelas longas distâncias até a escola. Em alguns casos, as meninas não vão à escola porque têm de olhar as crianças menores quando suas mães saem para o trabalho. O governo disse que a violência das quadrilhas e o recrutamento de crianças feito por elas dificultam a frequência à escola”.
Na Guatemala, condições semelhantes persistem, apesar da introdução de políticas voltadas para essas questões. Num relatório de 2013 para a Assembleia Geral das Nações Unidas, Najat Maala M’jid, médica do Marrocos, disse que o governo da Guatemala “criou leis, políticas e instituições adequadas, além de mobilizar um volume considerável de energia e recursos com o propósito de proteger as crianças, impedindo-as de ser vendidas, prostituídas ou submetidas à pornografia, assegurando-lhes seus direitos. Contudo, o governo vem se empenhando para que o impacto disso sobre a vida de crianças indefesas seja eficiente e duradouro, em razão da extensão desconhecida do volume de vendas de crianças, da prostituição e pornografia infantis, da proliferação de instituições que cuidam de alguns aspectos apenas desses fenômenos e da frágil interação entre elas. As políticas de direitos das crianças em vigor têm pouca coerência, faltam recursos adequados e indicadores de duração limitada, além de monitoramento e avaliação sistemáticos”.
Mentalidade imediatista por trás da contratação de crianças
“A Bolívia está regredindo”, lamenta Bellace. “É difícil imaginar que uma criança continuará a frequentar a escola se tiver de trabalhar em tempo integral. A lei do país diz que a criança trabalhará sob a supervisão de um dos pais. Isso raramente acontece […]. Para a maior parte das culturas, as crianças pré-púberes são simplesmente jovens demais para trabalhar, na medida em que lhes falta discernimento e o grau de atenção necessário. A criança nessa idade que trabalha o dia todo provavelmente é distraída, se cansa e sofre acidentes. Além disso, é impossível acreditar que a própria criança esteja de acordo com isso. O pai ou a mãe diz à criança que trabalhe […]. Trata-se, sem dúvida, de famílias pobres. Todavia, o ciclo da pobreza não será quebrado a menos que elas tenham acesso à educação básica.”
A lógica de curto prazo por trás da permissão dada ao trabalho infantil — em vez de a criança permanecer mais tempo na escola — não é difícil de entender. Barbara Kotschwar, pesquisadora bolsista do Instituto Peterson de Economia Internacional, diz que muitas famílias de baixa renda acreditam que não podem se dar ao luxo de não permitir que seus filhos tenham um salário tão logo tenham idade suficiente para fazer algum tipo de atividade, não importa quais sejam as consequências disso a longo prazo para o poder aquisitivo dessas crianças. “Essas pessoas são particularmente vulneráveis a qualquer escorregão da economia do país”, diz Kotschwar. Contudo, ela acrescenta que o que está acontecendo na Bolívia deixará o país bastante despreparado em relação ao Objetivo de Desenvolvimento do Milênio das Nações Unidas cuja meta é garantir, até 2015, que as crianças do mundo todo possam completar o curso de educação primária. De acordo com a ONU, o número de matriculados no curso primário nas regiões em desenvolvimento chegou a 90% em 2010, ante 82% em 1999. Entretanto, 57 milhões de crianças em idade de cursar o ensino básico estavam fora da escola em 2011.
Bellace observa: “É desanimador ver que o governo boliviano legalizou uma política que não põe em prática medidas progressivas para a melhoria dessa situação. Outros países da América do Sul o fizeram. É o caso do Brasil, que introduziu várias políticas, sendo uma delas particularmente bem-sucedida”. Os programas de transferência de renda, que dão auxílio financeiro aos pais para incentivá-los a manter os filhos na escola, são cada vez mais comuns.
De acordo com a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), da ONU, os programas dirigidos a famílias muito pobres são o Famílias em Ação, na Colômbia, o Programa de Dotação de Fundos Familiar (Praf), em Honduras, e o programa Tekoporâ, no Paraguai. Outros programas, como o Bolsa Família, no Brasil, e a Dotação de Desenvolvimento Humano, no Equador, incluem pobres, mas não os indigentes de suas populações-alvo, além dos muitos pobres, conforme dados da Cepal.
Embora tais programas concedam aos pais incentivo econômico para que mantenham os filhos na escola, aumentando assim o nível médio da educação da força de trabalho da população-alvo, eles têm sido criticados “por não tratarem da qualidade da educação”, observa Kotschwar. Em alguns casos, os professores não comparecem à sala de aula; em outros, não são adequadamente preparados para dar seu curso. Ou talvez o curso esteja voltado para habilidades que não condizem com as necessidades atuais do mercado de trabalho. Contudo, os diretores dos programas dizem que, em média, as crianças estão ficando mais tempo na escola.
Os economistas concordam que a Bolívia e os demais países congêneres da América Central jamais sairão da pobreza, a menos que as futuras gerações de trabalhadores sejam dotados de habilidades e conhecimentos comparáveis às dos trabalhadores das economias mais avançadas. Houve algum progresso nas últimas décadas, mas não o suficiente.
Conforme o Escritório de Relatório de Desenvolvimento Humano do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), os guatemaltecos de 25 anos ou mais passaram, em média, de menos de dois anos de frequência ao ensino primário, em 1980, para quase quatro anos em 2007. Na Nicarágua, esses números melhoraram, passando de quase três anos, em 1980, para mais de cinco anos em 2007. Em Honduras, subiram de cerca de 3,7 anos para seis anos, no mesmo período. Em El Salvador, de cerca de três anos para cerca de sete anos. Até mesmo na Costa Rica, o país mais rico e com nível educacional mais elevado da América Central, o adulto médio completou apenas cerca de oito anos de escolaridade em 2007.
“O problema real é o desenvolvimento econômico”, diz Bellace. “Qualquer país que tenha índices elevados de trabalho infantil tem também níveis elevados de desemprego adulto. Portanto, por que empregar crianças se há adultos desempregados? Simplesmente porque a mão de obra infantil é mais barata; seu salário é muito menor. Haverá um governo que prefira ver suas crianças trabalhando em troca de salários baixíssimos enquanto seus pais estão desempregados? Seria essa uma estratégia de avanço econômico? É claro que não. Os tigres asiáticos fizeram da educação sua prioridade e há nesses países níveis muito baixos de trabalho infantil. Alguns países da América Central e do Sul deveriam levar em conta o exemplo de Cingapura, da Coreia e de outros. O pior de tudo é que uma criança de 10 anos que trabalha é uma criança que jamais será capaz de conseguir um emprego, nem mesmo um que não exija muitas habilidades, ainda que ela viva até os 80 anos. Serão pobres a vida toda e é provável que seus filhos o sejam também. Elas viverão a vida inteira no atraso pela inexistência de uma política que as mantivesse na escola até os 14 anos. Melhorar a saúde é importante — e essa é a preocupação principal na África. Contudo, dar atenção à educação básica é igualmente fundamental.”
Kits de ferramentas para atender às necessidades coletivas
O que as empresas multinacionais podem fazer para lidar com as práticas abusivas de trabalho infantil e desencorajá-las em suas cadeias globais de suprimentos? O Escritório de Assuntos Internacionais do Trabalho (Ilab) do Departamento do Trabalho dos EUA, preparou um “kit de ferramentas” para pôr em prática o que descreve como um sistema de conformidade social abrangente e transparente. Funcionários do Ilab explicam que esse kit pode ajudar as empresas que ainda não tenham adotado um sistema, bem como aquelas cujos sistemas talvez precisem de reforço — sobretudo em áreas em que haja trabalho infantil e trabalho forçado.
O Ilab monitora regularmente as práticas de trabalho infantil nos países da América Central e do Caribe, com exceção de Cuba, coletando e avaliando informações de uma ampla gama de fontes, inclusive de governos centrais, organizações não governamentais e do setor privado. Um funcionário da agência observa que, embora não tenha autoridade para pôr em vigor leis estrangeiras que reflitam as convenções da OIT sobre trabalho infantil, o Ilab pode compartilhar informações com a Fiscalização Alfandegária e de Imigração dos EUA (ICE), o principal braço de investigação do Departamento de Segurança da Pátria dos EUA, que tem autoridade para interditar embarques de empresas não signatárias antes de cruzarem as fronteiras do país.
Além disso, numa época em que a responsabilidade social corporativa se tornou um mantra para inúmeras empresas globais, algumas delas poderão ver sua reputação prejudicada se for descoberto que elas, ou seus fornecedores no exterior, deixaram de cumprir as normas da OIT referentes ao trabalho infantil.
Publicado originalmente no site da Knowledge@Wharton.